Entre os cerca de 800 usuários de drogas que frequentam a cracolândia, como é conhecida a mais famosa cena aberta de uso no centro de São Paulo, ao menos 200 constam em boletins de ocorrência de desaparecimento, elaborados por familiares.
O dado faz parte do censo da cracolândia conduzido pela Polícia Civil desde o ano passado para identificar os integrantes da aglomeração de dependentes químicos. A iniciativa é a principal estratégia da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) para lidar com um dos mais antigos problemas sociais da capital.
“Eles vão para lá porque não querem ser encontrados pela sua própria família, pela sua comunidade”, diz o vice-governador Felício Ramuth (PSD), imbuído pelo governador para tratar do tema na esfera estadual. “São pessoas que saem da região metropolitana, ou da sua cidade, e o melhor lugar hoje para você consumir droga e se esconder, seja da sua família ou da sociedade, é dentro das cenas abertas. E é isso que nós estamos mudando”, continua.
Segundo Ramuth, essa é a explicação para a dificuldade das autoridades em reduzir a quantidade de pessoas que compõem o chamado fluxo, aglomeração de dependentes químicos, porque chegam novos frequentadores na mesma medida em que a gestão consegue encaminhar outros para tratamento e acolhimento. “Esse é o grande problema que nós ainda não conseguimos resolver. Ainda. Mas vamos resolver”, diz ele.
Entre abril e dezembro do ano passado, o Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, anunciado pela gestão Tarcísio como a principal porta de entrada para tratamento de dependência química no estado, fez 20 mil atendimentos, segundo balanço que a Folha de S.Paulo teve acesso.
Desse total, 4.766 resultaram em encaminhamentos a hospitais psiquiátricos e 2.770 a comunidades terapêuticas. Cerca de 60% desse montante são do centro da cidade, 30% vêm de outras regiões da cidade e 7,5% de outras cidades do estado; 49% afirmam frequentar ou já terem frequentado a cracolândia.
Esse perfil de paciente fica entre oito e 30 dias internado, segundo a gestão estadual, e perpetua o chamado efeito “porta giratória”, em que a mesma pessoa passa por diversas hospitalizações para se restabelecer após um período nas ruas e não completa o período de desintoxicação. “Se tiver 100 pessoas com tempo de permanência abaixo e apenas uma pessoa que a gente conseguir tirar de lá [cracolândia], definitivamente, nossa missão está cumprida”, diz Ramuth. “Nem na rede privada não vão encontrar nenhum paciente que, na primeira internação, resolveu o seu problema. Então, nada está diferente do que a gente já esperava”, continua.
Em levantamento mais recente, referente ao período entre 19 de dezembro e 12 de janeiro com 480 pacientes, a direção do Hub percebeu mudança no perfil dos pacientes atendidos; 94,5% afirmaram frequentar cenas de uso há menos de um mês. Em novembro e na primeira metade de dezembro do ano passado, esse percentual era de 50%, e um terço dos pacientes afirmou ter vivido na cracolândia por pelo menos seis meses antes de procurar atendimento.
Apesar do aumento das internações, a contagem diária de pessoas na cena aberta de uso não mudou desde abril do ano passado. Entre maio e dezembro, a prefeitura contabilizou média de 506 usuários por dia no período vespertino, quando a frequência é maior. Entre janeiro e maio, antes da abertura do Hub, a média foi 422.
Há a previsão de instalar 2.000 pontos de câmeras de vigilância pela região central de São Paulo, promessa de Tarcísio que ainda não foi entregue após um ano de gestão. “A pessoa vai sentir que lá é o lugar onde vai estar mais exposta, e vai deixar de ir para a região central para se esconder ou consumir drogas”, diz o vice. “A maior identificação vai inibir as pessoas que querem se esconder de ficarem lá. Nós precisamos ter o centro como o lugar mais monitorado do Brasil”, continua.
A força-tarefa da Polícia Civil também identificou ao menos 600 frequentadores da cracolândia com algum tipo de medida cautelar vigente. São pessoas condenadas por crimes de menor potencial ofensivo, como furto e porte de pouca quantidade de drogas, e obtiveram o benefício de cumprir a pena em liberdade ou com tornozeleiras eletrônicas. Nesse caso, porém, é proibido frequentar locais onde há consumo de drogas e bebidas alcoólicas. “Do ponto de vista técnico, é prevista prisão preventiva [sem prazo definido] para quem descumpre a medida cautelar”, diz o advogado Rafael Valentini.
Na prática, porém, ele explica que o período até o julgamento pode exceder o tempo de pena no caso de crimes de gravidade intermediária ou leve, por isso, há menos chances de serem decretadas prisões nesses casos.
Em operação no último dia 2, a Polícia Civil submeteu 985 usuários a biometria como mais uma iniciativa para identificar os frequentadores da cracolândia. O uso da biometria é recente, e durante todo o ano passado foram feitas incursões em meio ao fluxo em que os investigadores anotavam os dados e tiraram fotos dos usuários.
De acordo com o vice-governador, as cerca de 600 identificações de quem descumpria medida cautelar na cracolândia foram enviadas ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que se manifestou em relação a apenas 20 casos desde julho do ano passado. Procurado, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que não se manifesta sobre questões inerentes ao trabalho dos juízes.