“Não sou uma máquina que tem tudo gravado”, avisa Nathalia Timberg quando a entrevista começa. “Meus assuntos se misturam no tempo e no espaço.”

É o que acontece quando se tem tanto a dizer. Veterana do teatro e da televisão, após mais de 60 peças e 70 novelas, Timberg se prepara para mais uma andança nos tablados. A atriz, agora com 94 anos, vai protagonizar a peça “A Mulher da Van”, prevista para estrear em São Paulo no ano que vem.

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A atriz, agora com 94 anos, vai protagonizar a peça “A Mulher da Van” – Foto: Reprodução/Redes Sociais

Segunda casa não, primeira, ela corrige este repórter, ao falar dos palcos. “Voltar a atuar é como me juntar a um hábito que vem me acompanhando pela vida. Depois de um hiato por causa da pandemia, quando tivemos um período morto no país, verei como vou responder a essa volta. Provavelmente com mais cuidado.”

No dia desta conversa, feita por videoconferência, Timberg falava de uma cadeira de rodas em seu apartamento no Rio de Janeiro. Ela fez pouco caso da situação, dizendo que era um problema passageiro e que em nada impactava sua saúde. Até se levantou para mostrar que conseguia se apoiar nas próprias pernas.

“Não posso afirmar se está tudo disponível [no meu corpo], espero que sim”, ela diz, quando se senta de novo. “De repente surge uma trava. Mas sempre encontrei facilidade de responder às solicitações, vamos ver se consigo fazer isso com as suas.”

Ela o faz. Tem respostas e opiniões na ponta da língua. Não hesita, por exemplo, em rejeitar a ideia de que as novelas da Globo estejam passando por uma crise. Timberg está no ar em “Fuzuê”, folhetim das sete que tem amargado em audiência.

“Novelas podem perder formato e estilo, mas são uma forma de espetáculo muito arraigada no gosto do público. Todas as épocas conheceram crises de identidade. Essa não há de ser privilegiada”, diz.

Com dificuldade para emplacar novas histórias, a Globo tem apostado cada vez mais em remakes, especialmente após a repercussão positiva da nova “Pantanal” no ano passado. Desde então, a emissora refez “Elas por Elas”, lançada primeiro em 1982, e prepara uma nova “Renascer”, versão da novela de 1993.

A tendência escancara um desejo da televisão de se manter na zona de conforto, diz Timberg. “Num momento em que se pretende apostar no que não represente riscos à programação, apelam para a segurança de um remake que lhes pareça garantido. Mas podem se enganar.”

Entre as personagens mais memoráveis de Timberg está Celina Junqueira, do folhetim “Vale Tudo”, lançado em 1988. Na trama, Celina é irmã de Odete Roitman, vilã celebrada da dramaturgia brasileira.

O roteiro de um remake de “Vale Tudo” está sendo analisado pela alta cúpula da Globo. Caso ganhe sinal verde, a produção deve estrear em 2025.

Mas Roitman, a antagonista, pode virar uma pedra no sapato de quem trabalha na adaptação. Isso porque a personagem, vivida por Beatriz Segall, coleciona frases que seriam barradas pelos patrulheiros do politicamente correto.

Seria considerada elitista se ela dissesse hoje em dia, por exemplo, que gosta do Brasil só como cartão-postal e que os brasileiros são preguiçosos. “Falar do Nordeste antes da hora do jantar me faz perder o apetite”, como afirmou em uma cena da primeira versão da novela, seria taxado de xenofobia. Também não pegaria bem se ela voltasse a afirmar que a única solução para a violência é a pena de morte.

“Depende de uma série de fatores. Às vezes acertam, às vezes não”, diz Timberg, ao avaliar a possibilidade de existir uma nova Odete Roitman. “Personagens como ela movimentam uma novela. Quem leva a história adiante é o antagonista, não o protagonista.”

De vilãs ela entende. Timberg encarnou a maldade da governanta de “A Sucessora” (1978), de Manoel Carlos. Fez antagonistas também em “Rosa dos Ventos” (1973), e em “As Bruxas”, três anos antes, ambas na Rede Tupi. Décadas depois, de volta à Globo, deu vida à ardilosa Idalina de “Força de um Desejo”, em 1999.

“Já tive personagens que me deram gastrite ou coisa parecida porque tive que conseguir trazê-las a um nível de humanidade palpável”, ela conta.

Mas Timberg fez moças boazinhas também. É o caso da freira Maria Helena, de “O Direito de Nascer” (1964), um dos seus papéis mais marcantes, e de Estela, sua personagem mais polêmica, em “Babilônia” (2015).

Nesta última novela, Timberg fez par romântico com Fernanda Montenegro, sua amiga na vida real. As duas se beijam no primeiro capítulo.

À época, parlamentares evangélicos encomendaram um boicote à novela por causa do beijo, fazendo com que a audiência despencasse. Isso, somado à trama pouco interessante, fez “Babilônia” naufragar.

“As pessoas que não conseguem abandonar seus preconceitos devem procurar meios de comunicação que venham ao encontro das suas limitações”, afirma Timberg, ao relembrar o episódio. “Não fiquei triste. Fiquei com a tarefa de vencer o preconceito para que pudesse haver, da parte do público, uma visão crítica, seja ela qual fosse. É nisso que consta qualquer obra. Você não tem que esposar ideais dos personagens se não os compartilha.”

“Essas pessoas”, diz ela sobre minorias raciais e a comunidade LBGTQIA+, “não fazem parte da nossa sociedade? “Não são como você e eu? Por que não podem ser retratadas? Tenho pena de uma sociedade que não queira se discutir, se compreender e que não tenha uma visão que não seja a repetição nauseante, cansativa e insuportável da sua própria figura.”

Foi por causa dessa novela que a tradutora audiovisual Jessica Bandeira, 32, se encantou por Timberg. Ela, que é lésbica, viu suas convicções espelhadas na personagem Estela.

“Fiquei muito tocada com a coragem que a Nathalia teve”, diz. “Teve muito etarismo e lesbofobia nessa questão. Como se fosse nojento ver duas mulheres idosas se beijando. O mais curioso é que Nathalia teve, em ‘Amor à Vida’, um romance com o personagem de Ary Fontoura, e a repercussão foi diferente. As pessoas diziam ‘ai, que casal fofo’.”

Bandeira passou a ir em vários dos espetáculos de Timberg a partir de então. Tantos que viraram colegas. Hoje ela administra um perfil no Instagram dedicado à atriz com 136 mil seguidores.

Timberg e Montenegro se uniram em outra produção após “Babilônia”. O documentário “Fernanda e Nathália – Amigas De Uma Vida”, lançado em 2023 e disponível no Globoplay, faz uma homenagem à amizade delas.

“Considero Fernanda e Laura Cardoso quase que entidades do nosso teatro. Só lamento não ter mais tempo para ficar com elas, com quem tenho vivido momentos irretocáveis”, diz Timberg.

Não se sabe muito sobre o que Timberg faz em sua vida pessoal. É uma pessoa discretíssima, garante o ator e autor Cacau Hygino, que lançou uma biografia sobre ela em 2014.

“O problema dela é não querer tocar nas feridas”, diz ele, lembrando que Timberg gostava de se chamar de “ilha deserta”. “É uma opção dela, porque sabe que hoje em dia se leva tanta pedrada por qualquer vírgula que se fale.”

O que Timberg ensina aos novos atores, ele afirma, é a rigidez no trabalho. “Ela corrige os textos, diz ‘isso está ruim’. É uma mulher da geração que gosta do bom português, da boa pontuação e da educação no teatro.”

Timberg parece concordar. “Enquanto estiver viva, vou fazer teatro e televisão, essas coisas que constituem minha maneira de estar no mundo. Espero que nós possamos seguir em frente com a cabeça bem alimentada”, diz ela. “No momento em que o ser humano perde a curiosidade e não faz do seu cotidiano um aprendizado, ele já morreu e esqueceu de cair.”