Alexandra Bilar, 44, sofreu um acidente com um fogão portátil em Caieiras, na Região Metropolitana de São Paulo, em 2010. Foi internada no hospital com queimaduras e passou pelo tratamento inicial. Mas contra a sua esperança de voltar para casa, esperar as feridas fecharem e retomar a vida normal, passou por 35 cirurgias desde então.
No lugar das feridas, ficaram sequelas. Neste ano, Alexandra se aposentou do trabalho de professora por invalidez, e ainda tem mais cirurgias por fazer. “Eu ouvia falar de incêndio. Mas o que acontece com os sobreviventes?”, diz Bilar.
A lojista Karina Correia, 42, teve 40% do corpo queimado no dia 28 de fevereiro de 2021. Ela almoçava na casa da vizinha, na zona sul de São Paulo, quando um amigo abasteceu com etanol o tacho de arado onde faziam churrasco. A combustão foi imediata.
Comemorou o aniversário de 40 anos no hospital, onde ficou 31 dias internada.
Agora, toda segunda-feira, faz vacuoterapia no braço direito. Uma mangueira suga por 40 minutos sua cicatriz para amolecê-la e permitir um melhor movimento do membro. Por causa da dor, às vezes Karina apresenta mal-estar.
Não consegue segurar o mouse com a mão direita ou digitar em teclado por problemas de circulação no braço. Se ficar muito tempo com ele na mesma posição, diz que sente formigamento.
Ela não usa transporte público porque tem medo de que esbarrem no braço doente, além de não conseguir ficar em pé por muito tempo, devido a problemas na circulação das pernas. Mas se ficar muito tempo sentada, a pele entre as coxas esquenta.
Segundo o médico José Adorno, representante interinstitucional da Sociedade Brasileira de Queimaduras, os pacientes que sofrem com grandes ou médias queimaduras podem enfrentar doenças crônicas, doenças neurológicas (no caso de choque elétrico), estigmas por causa das cicatrizes e dificuldades emocionais.
“Existe uma invisibilidade desses pacientes hoje porque não são acolhidos na sociedade. Muitas crianças queimadas sofrem bullying e têm o desenvolvimento neuromotor muito prejudicado”, diz.
As sequelas ficam pelo resto da vida, diz o médico Wellington Menezes, cirurgião plástico da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e conselheiro da Associação Nacional dos Amigos e Vítimas de Queimaduras (Anaviq), fundada em 2018 por Alexandra.
Segundo os especialistas, a pele que é o maior órgão do corpo fica doente após a queimadura. Perde a capacidade de controle térmico, hidratação e proteção contra raios ultravioletas.
Além disso, diz Menezes, os enxertos de pele (quando a pele saudável de outra parte do corpo é usada para substituir a pele queimada) podem durar até dois anos para cicatrizar. Nesse período, podem cicatrizar bem ou não. Algumas aumentam de tamanho, formando queloide, outras ficam menores e limitam o movimento das articulações.
No último caso, o paciente pode não conseguir ter a mobilidade adequada de perna, braço e até pescoço.
As sequelas, porém, não são apenas funcionais. As cicatrizes das queimaduras geram dificuldades de reinserção social. “A gente não consegue minimizar a aparência da cicatriz a ponto de parecer que não existe. A pele enxertada fica com tonalidade e aspecto diferentes. Às vezes a pessoa não vai conseguir emprego pelo aspecto das cicatrizes”, diz Menezes.
Continuar na escola, ser contratado em um emprego, usar o transporte público e aproveitar o lazer podem ser atividades que ficam mais difíceis para vítimas de queimaduras.
Alexandra fundou a Anaviq para dividir experiências e ajudar novos “queimados”, como se refere ao grupo. Em novembro de 2020, criou um abaixo-assinado online pela aprovação de uma lei que pedia a inclusão da pessoa com sequelas de queimaduras no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A petição em 46 mil assinaturas.
“É um assunto chato de ser falado. Parece que a gente está se vitimizando, se colocando em um lugar de coitado. Mas não é, essa é uma realidade”, diz Alexandra. Ela afirma que os queimados não têm igualdade de condições em relação a pessoas sem cicatrizes, o que as enquadraria na lei.
O Projeto de Lei (PL) 4.558/2019 foi aprovado na terça-feira (15) na Câmara dos Deputados e será enviado para o Senado. O texto assegura às vítimas de queimaduras uma avaliação biopsicossocial que determina a gravidade das sequelas e se existe deficiência.
O PL também garante assistência integral pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em todas as etapas do processo de recuperação.
Cerca de 1 milhão de pessoas sofrem queimaduras por ano no país. Destas, por volta de 150 mil dão entrada nos hospitais para internação, diz o médico Adorno, que representa a Sociedade Brasileira de Queimaduras.
Desde 2009, ele defende que os pacientes sejam considerados pessoas com deficiência. “São pessoas carentes de políticas públicas. É uma forma de ampará-los”, diz.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta que pessoas vivendo em condições de risco, tais como ambientes superlotados e de extrema pobreza são mais vulneráveis às queimaduras. Por outro lado, diz Adorno, essas pessoas precisam arcar com tratamentos longos, que incluem cirurgias, malhas compressivas, fisioterapia, apoio psicológico, protetor solar e hidratantes de preço alto.
Em audiência pública no Senado naquele ano, ele citou que as vítimas de queimaduras poderiam ter os mesmos benefícios que pessoas com deficiência, entre eles direito ao trabalho e ao passe livre, direito à educação, saúde e acessibilidade, além de direito a isenções fiscais e financiamento.