O trabalho da medicina não é fácil e isso ficou ainda mais evidente nos últimos anos. Além dos médicos, enfermeiros e equipe técnica, começamos a conhecer melhor a função dos fisioterapeutas. Atuando nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), muitas vezes estes profissionais passavam despercebidos por quem é leigo no assunto, mas não durante a pandemia. Somando esforços para cuidar de pacientes e permitindo uma rápida recuperação por meio dos movimentos do corpo, esses profissionais deixaram evidente a importância de um tratamento humanizado. E há quem diga que esta será a medicina do futuro.

Hospital Cajuru, em Curitiba, busca aproximar-se dos pacientes através de um intenso trabalho de repensar a medicina. Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

Todos os dias, eles se dedicam a avaliar pacientes internados, analisar exames laboratoriais, dados vitais e, ainda, verificar a necessidade de ventilação mecânica. Situações assim se repetem na rotina diária dos fisioterapeutas das UTIs. 

“O fisioterapeuta já está há muito tempo na UTI, mas na pandemia tivemos um enfoque maior devido à ventilação mecânica, ajudando o paciente a respirar. Muitos pacientes necessitavam disso e o fisioterapeuta esteve muito ativo” .

explicou Rafael Cavalli, fisioterapeuta do Hospital Universitário Cajuru, de Curitiba

Dentro da UTI são vários profissionais atuando ao mesmo tempo: médicos, enfermeiros, técnicos, psicólogos, nutricionistas, o pessoal da farmácia e os fisioterapeutas. 

“O fisioterapeuta cuida de músculos, articulação e funcionalidade. Por muitos anos, muita gente tinha a ideia de que paciente grave tinha que ficar totalmente imobilizado na UTI, mas de uns anos pra cá, a gente vem quebrando esse paradigma, porque, quanto mais imobilizado e mais parado o paciente ficar dentro da UTI, piora o prognóstico dele”. 

comentou Rafael Cavalli, fisioterapeuta

O fisioterapeuta que atua dentro da UTI busca restabelecer as funcionalidades dos pacientes, tentando diminuir possíveis sequelas. Durante a pandemia, as equipes perceberam o quanto um trabalho conjunto é importante para um melhor cuidado com os enfermos.

“Quando a gente fala em tratamento humanizado, é o que sempre tem que ocorrer dentro de uma UTI. Aquele paciente lá dentro é o amor de alguém, então quanto mais humano a gente for, melhor é o processo do paciente. Falar bom dia, boa noite ao paciente, mesmo que esteja intubado. Explicar os processos aos pacientes, deixando a par de tudo que acontece e fazê-lo participar do tratamento”. 

detalhou o fisioterapeuta Rafael Cavalli

Em Curitiba, o Hospital Cajuru aprendeu a olhar para essa parte humanizada de um jeito muito forte, fazendo o paciente participar do tratamento, saber a importância do que está sendo feito e a necessidade de ajudar os médicos. 

“Na fisioterapia, 50% do tratamento é responsabilidade minha e os outros 50% é do paciente, que precisa querer melhorar para que a gente possa ajudar ele também. Temos muito a parte também do familiar participante, aquele que durante o dia fica ao lado do paciente, é muito importante”.

comentou o fisioterapeuta Rafael Cavalli
Música faz com que relação entre profissionais e pacientes seja mais leve. Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

Estimulando pacientes

Durante a pandemia, aprendemos que, mesmo diante de um quadro grave de saúde, a reabilitação é sempre possível. E a esperança está na fisioterapia intensiva, que cumpre o importante papel de melhorar a capacidade funcional geral e restaurar a independência respiratória e física do paciente, diminuindo o risco de complicações associadas à permanência no leito. 

A atuação ampla, que teve muito destaque na pandemia, foi extremamente necessária no tratamento de casos mais delicados de Covid-19. Quando se fala em “legado positivo” do período mais crítico que vivemos nos últimos anos, todos os profissionais são unânimes: a necessidade de humanizar os tratamentos, sejam eles quais forem, como diz o fisioterapeuta Aloysio Pechecoske. 

“Acho que o legado pessoal, pra mim, foi o autocuidado, a preservação do ser humano, dos seus, a preservação própria, enfim, o cuidado consigo mesmo pensando no coletivo. Com relação ao profissional, acho que é o agir em grupo, continuar pensando no coletivo, mas tendo a certeza que estamos todos conectados, não somos separados. É por um objetivo comum que é a melhora, a preservação, a saúde integral do ser humano que eu acho que é o que fica”. 

disse Aloysio Pechecoske, fisioterapeuta do Hospital Marcelino Champagnat

No caso de Aloysio, foi através da música que ele encontrou uma forma de diminuir a tensão no hospital e conquistar os pacientes. E isso tudo aconteceu de um jeito muito natural. 

“Sempre fui uma pessoa que gosta muito de arte, de forma totalmente amadora, mas é algo que eu gosto e que traz alento, esperança, desperta sentimentos bons. Na época da pandemia, tinham muitos pacientes que demoravam muito para melhorar, ficavam presos naquela condição, e eu cantarolando volta e meia, porque tem momentos que você tem que relaxar, por mais que esteja vivendo aquilo, tem que viver com o menor peso possível. Já está pesado para o paciente, se eu colocar mais peso nisso fica insuportável”. 

contou Aloysio Pechecoske, fisioterapeuta

Em determinado dia, enquanto cuidava de uma paciente, ela percebeu que ele cantava e pediu que continuasse. Sem pensar duas vezes, e já acreditando que aquele momento poderia ser benéfico para a mulher, o fisioterapeuta atendeu ao pedido.

“Cantei uma música, que fala de esperança, do filme infantil da Cinderela, e fez todo sentido para ela naquele momento e para mim também. Acho que pra ela foi muito importante, marcou aquele momento e isso certamente tem impacto na vida daquela pessoa que está longe de tudo, longe de um carinho, é como se fosse um abraço apertado. Foi de uma maneira totalmente espontânea, fiz porque fui tocado por algo”. 

lembrou o fisioterapeuta Aloysio Pechecoske

Veja o vídeo de Aloysio cantando para a paciente:

A tecnologia também se tornou um bom artifício para fazer com que os pacientes “fujam” um pouco da realidade que estão vivendo e, ao mesmo tempo, colaborem com o tratamento que os fará melhorar. 

Rafael Cavalli contou que, no Hospital Cajuru, usar a tecnologia faz com que os profissionais consigam ser muito mais assertivos. 

“Quando falamos de tecnologia, falamos também de afetividade e respeito à individualidade. No Cajuru, trabalhamos muito com a realidade virtual, que na fisioterapia acaba tendo até uma adesão maior. Com o metaverso, a gente consegue tirar o paciente daquele local triste que é a UTI, levando ele para outros ambientes”. 

contou Rafael Cavalli, fisioterapeuta

Sobre um caso recente, o fisioterapeuta lembrou de uma idosa que, aos 90 anos, ficou um bom tempo internada e não interagia muito com a equipe médica. Em contato com a família, os profissionais souberam que ela gostava de, todas as manhãs, ir para o jardim de casa tomar sol. Como ela não podia sair da UTI naquele período, foi o momento em que a realidade virtual entrou.

“A partir da realidade virtual, com o óculos VR, colocávamos ela num ambiente de jardim com sol e isso mexeu totalmente com a parte humanizada dela. Ela estava numa poltrona, mas a realidade virtual a levava para um jardim com sol. A partir desse dia, ela começou a interagir mais com a gente, fazendo os exercícios e tudo mais. Essa parte humana tem muito a ver com a reabilitação, tentando respeitar as individualidades do paciente”. 

disse o fisioterapeuta Rafael Cavalli
Tecnologia também vem para tornar mais real o ideal de humanização. Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

Humanização que salva

Aos 61 anos, o motorista João Maria de Oliveira viu na prática o quanto o tratamento médico, pensado de modo individual, é importante. Em dezembro de 2022, ele começou a se sentir mal e precisou ser internado.

“Comecei a ter muita dor no peito em casa. Tomei um comprimido, passou um pouco, mas continuou a dor. Fui para a UPA do Boqueirão e, chegando lá, já viram que eu estava infartando e me transferiram para o Cajuru”. 

contou o motorista João Maria de Oliveira

Ao chegar ao Hospital Cajuru, os profissionais perceberam que, além do problema cardíaco, João Maria também estava com um problema no rim. Ele precisou tratar essa questão para, depois, enfrentar a cirurgia no coração. 

João Maria se recupera de uma cirurgia no coração. Foto: Arquivo Pessoal.

Foi durante os 21 dias internado que o motorista notou que, ali no hospital, não era “só mais um”.

“Todos foram muito bons, cuidadosos, ágeis, cuidam da gente o tempo todo. Excelentes. A preocupação deles ajuda muito, eles são muito preocupados com a gente. Voltei para casa leve, porque o atendimento foi bom, eles se preocuparam e cuidaram muito de mim, não tenho o que dizer”. 

agradeceu João Maria de Oliveira, motorista

Agora em casa, o motorista brinca que, apesar de ainda não se sentir “pronto para outra”, está se recuperando bem.

“Estamos aqui, melhorandinho cada dia mais e bola pra frente. Me recuperando bem, a cada dia melhor, graças a Deus e ao trabalho que foi realizado para muito além da medicina”. 

comentou João Maria de Oliveira sobre o tratamento

Humanização é o futuro da medicina, avaliam profissionais do Hospital Cajuru. Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

Medicina do presente e do futuro

Como legado do período mais crítico da pandemia, ficou a cooperação, o trabalho em equipe e a união entre todos os profissionais da saúde. Tudo isso associado a muito trabalho voluntário e com uma maior preocupação em relação à integridade psíquica dos especialistas e, também, com a integridade mental e emocional dos pacientes. 

Na avaliação do médico paliativista Ronnie Ykeda, o momento de muita união e solidariedade mostrou a importância de levar isso como aprendizado para muito além dos períodos críticos, mas sim como uma forma de trabalho perpétua.

“O trabalho humanizado aumentou a intensidade na pandemia, por causa da gravidade dos casos e dos pacientes mais jovens que faleceram. Cada passo e melhora do paciente era comemorada com muita alegria entre os profissionais, os pacientes e os familiares. Percebi uma intensificação das medidas de reabilitação física”. 

disse o médico paliativista Ronnie Ykeda

Segundo o paliativista do Hospital Cajuru, o calor humano demonstrado pelos profissionais de reabilitação, entre eles a fisioterapia, foi muito grande. Eles lutavam todos os dias para fazer aquele paciente que sobreviveu se reabilitar.

“Quando iam ter alta do hospital, após um longo internamento, era uma festa. Esse vínculo do profissional de saúde com o paciente, na busca de um resultado, de uma reabilitação e um tratamento humanizado, se intensificou bastante na pandemia. Esse otimismo que o profissional passava e a aproximação do tratamento humanizado. O cuidado paliativo também cresceu muito, que é dar conforto aos pacientes graves”. 

lembrou o médico paliativista Ronnie Ykeda
Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

Tudo que foi vivenciado pelos profissionais tornou evidente a necessidade de transformação do trabalho multiprofissional, estabelecendo objetivos claros para favorecer o paciente, e que levam em conta os valores pessoais deste. 

“É como se toda a equipe multi e o médico se subordinassem ao paciente e aos seus valores. Não é só aquela coisa de cada um ir lá, fazer a sua parte e ir embora. Todos os profissionais envolvidos no cuidado devem buscar um objetivo comum. E esse objetivo é alcançado, você o conhece, por meio da biografia do paciente, seus valores, aquilo que o paciente quer fazer com o tempo dele”. 

explicou Ronnie Ykeda, médico paliativista

Na avaliação do médico, a importância do trabalho multiprofissional é essa: você consegue aumentar o vínculo do paciente com a equipe, buscando um objetivo comum centrado na sua recuperação. 

“Não é mais um objetivo puramente técnico e científico, é um propósito que coloque o paciente no centro, o que chamamos na medicina de cuidado centrado no enfermo, onde todos os profissionais buscam um intuito comum, um tratamento individualizado. O trabalho multi faz isso porque melhora o resultado criando vínculo entre o paciente e o profissional, o que faz o doente aderir ao tratamento”. 

comentou o médico paliativista Ronnie Ykeda

Junto de todas as experiências vividas, seja antes, durante ou após a pandemia, Ronnie destaca que a medicina do futuro é essa: a humanização.

“Costumo dizer que a medicina do futuro é um resgate da medicina do passado. Antigamente, o médico se voltava muito para o conforto do paciente, uma vez que a maioria das doenças não eram curáveis. Com a modernidade e as novas tecnologias, passamos a curar muitas doenças e o médico começou a esquecer de dar conforto para o doente. A equipe multi também, focando mais na parte técnica, na evolução tecnológica e esqueceu de dar o conforto adequado. A medicina do futuro é o resgate disso, é o resgate do tratamento humanizado e individualizado porque estamos recuperando aquela noção de que sem conforto não haverá cura”. 

avaliou Ronnie Ykeda, médico paliativista

Na avaliação do paliativista, a dica geral é a de que o paciente tem que estar confortável e bem tratado, e que o procedimento deve ser humanizado, para daí alcançar o segundo objetivo, que pode ser uma cura. 

“A gente vive um tempo de muita informação na faculdade de medicina, e pouca formação. É muito dado científico, informações que despejam nos acadêmicos, e pouca formação ética, formação humanizada, pouca sabedoria, que é saber organizar o conhecimento segundo o devido fim. A gente está recuperando essa medicina antiga, a parte humanizada da medicina antiga, e isso vai ser a medicina do futuro”. 

comentou Ronnie Ykeda, médico paliativista
Fisioterapeuta avalia que quando profissional se coloca no lugar do paciente, trabalho flui de forma mais responsiva. Foto: Divulgação/Hospital Cajuru.

O fisioterapeuta Aloysio reforça que, em muitos momentos, os profissionais de saúde acabam se colocando em uma posição de destaque. Mas esquecem que também são seres humanos. Normalizar que todos são iguais é o primeiro passo.

“A gente tem que primeiro se colocar numa condição similar ao outro para primeiro compreendê-lo, e não tão somente na questão clínica e fisiológica, mas na questão pessoal, mental, para saber que pensamos de modo parecido. Somos muito semelhantes, então não há porquê ter a exacerbação de algo que não é muito real”. 

concordou o fisioterapeuta Aloysio Pechecoske

Segundo o fisioterapeuta, não é porque um médico atende um paciente, que ele é menos que o profissional, pelo contrário.

“Eu tenho que te entender me colocando no teu lugar. Não consigo fazer isso de outra maneira. Se eu não compreender você no todo, vai ficar faltando alguma peça. Isso inclusive é o que nos distancia de um diagnóstico preciso, de um tratamento coerente, quando a gente se distancia do ser humano que está ali precisando de cuidados. Quando a gente se coloca na mesma posição de ser humano, a gente fecha o negócio muito mais rápido, um tratamento, um diagnóstico com muito mais precisão, inclusive”.

concluiu o fisioterapeuta Aloysio Pechecoske

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Medicina humanizada atrelada à fisioterapia: o legado da pandemia com um novo olhar sobre o paciente e sua história

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