Permanecer trabalhando exclusivamente no SUS (Sistema Único de Saúde) após o período de residência médica não é o objetivo da maioria dos profissionais de saúde. A competitividade salarial com o mercado privado e as condições de trabalho encontradas no setor público são os principais fatores que afastam os médicos residentes do SUS.

Os dados constam na Demografia Médica 2023, um estudo conduzido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

“Menos de um quarto dos médicos [do país] trabalha exclusivamente no SUS, independentemente de serem especialistas ou não, ou de terem feito residência médica. Se pensar que cerca de 8% a 10% são médicos residentes, temos um percentual muito pequeno”, diz Mário Scheffer, professor livre-docente da FMUSP, coordenador do estudo.

Segundo o levantamento, 24,6% dos médicos residentes entrevistados, após o prazo de um ano de residência, afirmam trabalhar majoritariamente ou de maneira integral no SUS. Cinco anos depois, essa preferência cai para 12,1%.

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Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

O estudo ouviu 1.614 médicos residentes, com idade até 35 anos. As entrevistas foram feitas por telefone, com aplicação de um questionário com 32 perguntas.

De acordo com Scheffer, a residência médica é financiada em sua maior parte pelos ministérios da Saúde ou da Educação ou por governos estaduais. Cerca de 17% da residência é financiada por instituições ou hospitais com recursos próprios.

“A formação especializada ocorre toda ela no SUS, o financiamento são bolsas públicas pagas pelo governo. Mas, depois de formados, esses médicos se inserem num mercado de trabalho que não vai atender prioritariamente usuários do SUS”, declara Scheffer.

Fernando Brito, 26, terminou a residência em anestesiologia na Faculdade de Medicina do ABC, na região metropolitana de São Paulo. Ela foi concluída em fevereiro deste ano. Um mês depois, entrou como preceptor -faz o elo do ensino teórico e prático- no Hospital das Clínicas e faz especialização em anestesia pediátrica, também no HC.

“Optei por ficar mais um ano me aperfeiçoando. A preceptoria é um processo administrativo no qual eu consigo ajudar os próprios residentes da anestesiologia a terem uma experiência melhor com resolução de problemas, organização de escalas e aulas. Então, preferi, mesmo formado e apto a trabalhar no mercado privado, usar essa oportunidade para me aperfeiçoar mais.”

O médico entende que principalmente nas disciplinas em que existem procedimentos, como cirurgia, ou em algumas das clínicas muitas vezes o recém-formado opta por ingressar na rede privada em busca de remunerações maiores e mais condizentes com a expectativa que essa pessoa tem.

“Salário pesa, mas não é só isso. Se eu encontrasse no SUS as mesmas qualidades que encontro no particular, para mim, não haveria problema nenhum em ficar no SUS. O salário é justo, mas óbvio que poderia melhorar, para se equiparar ao particular”, diz Brito.

“Mas também existem as condições de trabalho. Muitas vezes, os materiais, os insumos, encontrados na rede particular são de melhor qualidade. As equipes de administração, de gestão, são mais qualificadas.”

Para Adriano Massuda, médico sanitarista e professor da FGV, um dos principais pontos que dificultam uma carreira atrativa para o médico dentro da rede pública é a diferença entre as especialidades.

“Tem que olhar especialidade por especialidade. Algumas são muito pró-mercado, enquanto outras são pró-sistema público, como medicina de família, medicina preventiva e social, infectologia, áreas que têm um campo de trabalho maior no sistema público”, diz o médico, que foi secretário-executivo substituto no Ministério da Saúde (2011 e 2012).

Massuda também destaca que o setor privado já em mostrado interesse nessas áreas predominantes do serviço público. “Por exemplo, a medicina de família e comunidades, quem procurava, em geral, era quem já era mais vocacionado para trabalhar no SUS. Nos últimos anos, o setor privado tem visto a importância do trabalho do médico de família e começado a contratar profissionais dessa especialidade.”

A Demografia Médica também aponta um grande desequilíbrio na distribuição dos residentes médicos pelo país. A maior concentração está na região Sudeste, com 56%. Em seguida, vem Sul (16%), Nordeste (17%) e Centro-Oeste (8%). A maior defasagem está no Norte, que conta com apenas 4% dos residentes. Os estados de Roraima e Amapá, por exemplo, têm menos de cem residentes somados.

“Os ministérios da Saúde e da Educação têm que trabalhar de forma mais articulada para expandir o número de programas de residências nas regiões onde se tem grande necessidade e escassez de formação”, diz Massuda.

“Para fazer um programa de residência, tem que ter um serviço. Isso entra também como política de investimento na infraestrutura, que não é só física. Tem que estar dentro de um projeto de desenvolvimento do sistema de saúde nacional em que a formação de mão de obra qualificada é crucial para enfrentar os problemas de saúde da atenção básica na atenção especializada”, afirma o médico.

Para Renata Vilhena, professora associada na área de gestão pública da Fundação Dom Cabral e presidente do conselho da República.org, alguns aspectos precisam ser alterados para que as carreiras se tornem mais atrativas e que consiga captar profissionais que estejam mais alinhados com o serviço público, diminuindo a evasão.

“Às vezes, investe-se tanto tempo na formação de um profissional e ele logo sai. Aí é preciso fazer um novo concurso, vem a rotatividade, e isso traz um prejuízo muito grande para a prestação do serviço público”, diz a professora.

“Tem que ter coragem de olhar para o todo e criar uma visão de futuro, aonde quer chegar para a melhoria nas carreiras, aonde é possível agora, aonde é possível daqui a alguns anos. O que não pode é ficar desse jeito.”