ARTUR RODRIGUES, CAROLINA LINHARES, FLÁVIA FARIA E JOÃO PEDRO PITOMBO – SÃO PAULO, SP, E SALVADOR, BA (FOLHAPRESS)

Ao menos 21 mil candidatos brasileiros que disputarão as eleições municipais deste ano para prefeito ou vereador mudaram a declaração de cor e raça que deram no último pleito, em 2016, conforme registros disponibilizados até agora pela Justiça Eleitoral.

A mudança atinge um a cada quatro (26%) candidatos que concorreram nas últimas eleições e estão participando da disputa de 2020.

O movimento acontece num momento em que os partidos têm sido pressionados a ampliar a representatividade de negros na disputa, inclusive com a fixação de cota na distribuição dos recursos de campanha proporcional à quantidade de candidatos.

 

BRASÍLIA, DF, BRASIL, 12-09-2014, 10h30: O Tribunal Regional Eleitoral do DF começa a lacrar e carregar as urnas que serão enviadas para votação no exterior. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

 

Ao mesmo tempo, especialistas falam no impacto do aumento de pessoas que se reconhecem como pretas e pardas após ações de combate ao racismo.

O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar neste mês para que a cota financeira para negros no fundo eleitoral, aprovada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para 2022, seja aplicada já neste ano. O caso deve ser analisado pelo plenário do STF.

A criação da cota financeira para negros chegou a gerar debate sobre brechas nas regras –incluindo a subjetividade da autodeclaração e eventuais tentativas de burlá-la.

Os 21 mil candidatos que mudaram a declaração de cor e raça que havia sido dada no último pleito municipal representam por volta de 8% das 260 mil candidaturas que constavam no sistema do TSE até esta quinta (24) –os números podem aumentar, uma vez que as inscrições ainda estão sendo acrescentadas.

Embora essa quantidade de alterações não possa ser atribuída à criação da cota, especialistas avaliam que esse fator pode ter influência em ao menos parte do fenômeno.

A maior parte das mudanças –36% do total– foi da cor branca para parda. O movimento contrário vem na sequência, com 30% das alterações de pardo para branco.

Outros 22% mudaram de pardo para preto ou preto para pardo, mudança sem efeito prático do ponto de vista da distribuição de recursos do fundo eleitoral. Outros 2% mudaram de branco para preto.

Na capital paulista, a reportagem localizou ao menos quatro vereadores que, na comparação com 2016, tiveram mudanças na cor.

De pele clara, o vereador Caio Miranda (DEM) mudou a cor de branca para parda. Ele disse que o preenchimento, em 2016, foi feito pelo partido.

“A minha mãe era branca e meu pai é um nordestino, filho de indígena com africano, e com judeu ainda. Tem uma mistura supergrande. Então, eu sou pardo. Se eu falar que sou branco, por mais que eu pareça branco, vou estar negando a minha raiz”, diz.

Miranda diz que a mudança não teve relação com as cotas e cita o fato de já em 2018 ter se descrito como pardo na campanha a deputado federal.

O vereador Alfredinho (PT) mudou sua cor de pardo para negro. “Com a consciência que a gente passa a ter, eu posso dizer que sou uma pessoa negra. Eu tenho uma avó que foi descendente de escravos”, diz ele, que criticou eventuais mudanças devido à cota. “Acho que é muito ruim alguns que não tenha a cor se declarar apenas por causa da cota.”

Segundo o levantamento da reportagem, os partidos que mais tiveram candidatos que mudaram são PSD (1.829), MDB (1.787) e PP (1.685). Por estado, Minas Gerais (3.143), São Paulo (2.308) e Bahia (2.095).

Na Bahia, um dos estados de maior população negra do país, 33% dos candidatos trocaram declaração da cor da pele entre as eleições de 2016 e 2020, incluindo candidatos a prefeito de quatro das principais cidades do estado.

Em Barreiras, o deputado federal Carlos Tito (Avante) disputará a prefeitura declarando ser pardo. Há quatro anos, afirmava ser branco.

Já em Camaçari, o prefeito Antônio Elinaldo (DEM) declarou-se como preto na eleição deste ano e pardo na anterior. O mesmo aconteceu na cidade vizinha de Lauro de Freitas, onde a prefeita e ex-deputada federal Moema Gramacho (PT) também passou a classificar como preta.

“Nunca me senti identificada com esta cor parda, por isso busquei resgatar a minha identidade. Foi autoafirmação mesmo. Sou uma negra, filha de mãe branca e pai negro, nascida no Pelourinho”, afirma Moerma Gramacho.

Doutor em ciência política, o professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) Cloves Oliveira afirma que há duas hipóteses para as mudanças entre 2016 e 2020 de candidatos que se autodeclaram como pretos ou pardos.

De um lado, é crescente o número de pessoas, sobretudo entre os mais jovens, que tem se reconhecido como negro, resultado direto de mobilizações de movimentos da sociedade civil.

Esta premissa encontra respaldo nos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apontam que 19,2 milhões de brasileiros se declararam pretos em 2018, um crescimento de 32% comparado a 2012, quando este número era de 14,5 milhões.

Por outro lado, com o avanço de políticas públicas de reparação, o declarar-se pardo ou preto ganhou dimensão simbólica no campo político: “A sociedade passou a valorizar este sentimento de pertencimento”, afirma o professor.

O caso de Salvador é bastante didático nesse sentido. Uma das cidades com maior proporção, a capital baiana nunca elegeu um prefeito negro. O tema, contudo, ganhou centralidade na pré-campanha, a partir de mobilização de entidades por mais pretos e pardos na disputa pela prefeitura.

Também houve um movimento de candidatos brancos ao Executivo que buscaram pretos ou pardos como vices: “É artifício de lideranças partidárias para dar uma ênfase na ideia de que essas organizações não são racistas”, destaca Oliveira.

Em sua avaliação, a disputa por espaços de protagonismo dentro da estrutura dos partidos não deve ser fácil. “Sem recursos, tempo de televisão e ferramentas para que os grupos sub-representados consigam expor as suas ideias, será impossível corrigir esta distorção.”

Cientista político da FGV, Marco Antonio Teixeira afirma que uma combinação de fatores pode ajudar a explicar as mudanças nas declarações de cor. “Têm ocorrido situações em que pessoas começam a se reconhecer enquanto a condição étnica que antes não se identificavam. Mas teve aí recentemente a decisão sobre a alocação de recursos [com cota para negros] e é preciso ver se houve uma onda de alterações [na identificação]”, diz.

O advogado Rodrigo Pedreira, especializado em direito eleitoral, acredita que haverá casos de brancos identificados como negros e que isso deverá ser fiscalizado, embora não tenha ficado clara qual seria a punição. “Acredito que virão à tona, tanto por adversários quanto pelo Ministério Público quanto por militantes.”

A reportagem encontrou candidatos estreantes cuja declaração de cor pode gerar confusão.

João Paulo Demasi, candidato a vereador em São Paulo pelo PSOL, afirma que um eventual aumento de candidaturas negras se dá “por uma mudança do próprio entendimento do ser humano em se identificar negro”.

Ou seja, uma nova autopercepção ou autoaceitação, segundo ele, mais do que por influência da nova regra eleitoral, que não estava colocada quando os partidos iniciaram a montagem de chapas.

Demasi, marido da apresentadora Bela Gil, é filho de mãe negra e pai branco e se identifica como preto em sua primeira eleição. Por ter cabelo liso, ele diz que dá explicações. “Não é meu nariz, minha boca, meu cabelo que me identificam. Isso tem que mudar até pela educação. A identidade é uma percepção minha, não sua”, afirma.

“Minha mãe é negra baiana. Eu era o menino preto numa escola de brancos. Eu sofri. Vi minha mãe chorar e chorei pela minha mãe. Ouço ‘só podia ser preto’ desde os 12 anos. Me identifico preto desde criança”, diz.

Demasi afirma, portanto, que sua declaração como preto não tem a ver com a nova regra eleitoral. Ele argumenta, porém, que os partidos deveriam se propor a seguir a divisão igualitária de verba entre negros e brancos mesmo que o plenário do STF ao final decida que a regra não vale em 2020.

Marcos Medeiros, candidato a vereador pelo PT, afirma que também sofreu questionamentos na pré-campanha por ter se declarado negro. “Eu sou descendente de negros e me sinto negro, essa é a minha identidade. Às vezes há um preconceito em se assumir negro”, diz.

Ele afirma que seu despertar aconteceu em 2017, quando sofreu racismo em viagem a Santa Catarina.

“Por mais que a sociedade diga você é isso ou aquilo, você que tem que se determinar”, afirma. De acordo com ele, o aumento de candidaturas negras é explicado pelo fato de pretos terem a consciência de que é preciso se lançar à política para ter voz, e não devido à fixação da cota financeira.

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Mais de 20 mil candidatos mudaram declaração de cor desde as últimas eleições

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