Em apenas dois anos, uma assistente de controladoria de 34 anos acumulou a dívida de R$ 500 mil jogando em caça-níqueis eletrônicos. Agora, conta com o auxílio da família, no interior de Minas Gerais, para lidar com o aperto.
Joana, cujo nome original foi omitido a pedido da entrevistada, começou a apostar em maio de 2022 por recomendação de um amigo que dizia ganhar dinheiro. “Ele me ensinou estratégias, como uma tabela de ganhos e os horários que mais pagavam, e eu vi uma oportunidade de prosperar, de aposentar meus pais e não precisar mais de trabalhar.”
Em quatro meses, o salário dela deixou de bastar para sustentar o jogo e ela contratou um empréstimo de R$ 15 mil junto ao banco. Tudo foi gasto em dias de jogo.
Quando se viu sem recursos para saldar os débitos, a assistente de controladoria passou a pedir dinheiro aos pais e a amigos. “Gastei toda a herança da minha mãe, algo em torno de R$ 300 mil”, relata. Para conseguir empréstimos, usava desculpas como compras de lotes e ameaças de agiotas.
A mineira recorda de receber altas quantias. “Cheguei a ganhar R$ 50 mil em uma aposta, mas depois perdia tudo apostando.” Os prejuízos consecutivos a fizeram peregrinar de bet em bet, em uma busca frustrada pelos lucros prometidos por anunciantes nas redes sociais e pelo colega.
Ela só parou após ser confrontada pelo marido, há cerca de 20 dias. “Estava tão deprimida com as dívidas que meu leite começou a secar”, diz Joana, que vive o puerpério no momento e desenvolveu depressão pós-parto.
A experiência dela se encaixa no quadro de dependência em apostas, descrito por psiquiatras como transtorno do jogo. Uma das consequências do quadro clínico é o superendividamento.
Pessoas nesse nível de adoecimento precisam buscar ajuda psiquiátrica. Segundo Joana, o auxílio médico só coube no orçamento da família graças ao plano de saúde oferecido pelo emprego.
O cônjuge da mineira teve de vender o carro e contratar ele mesmo outro empréstimo para pagar as amigas da esposa, que entraram no cheque especial para acudir aos pedidos de ajuda de Joana.
Em casos como o da mineira, nos quais o crédito foi contratado junto a bancos, as instituições financeiras podem buscar a Justiça para executar o débito. O processo pode levar à perda de bens, como carros e imóveis.
APÓS PERMISSÃO PARA JOGOS, REGRAS SOBRE DÍVIDAS DE APOSTADORES MUDARAM
Desde que receberam permissão para atuar no país após o ex-presidente Michel Temer sancionar a legalização das apostas de quota fixa, os sites de apostas se instalaram no sistema financeiro nacional.
Hoje, as operações ligadas ao jogo são faturadas por empresas de pagamento. Segundo dados da Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), cerca de 90% dos pagamentos é feito via Pix, 3% por cartão de crédito e o restante por boleto, TED ou cartão de débito.
Dessa maneira, o risco de calote recai sobre as bandeiras de cartão e sobre os bancos, que oferecem crédito no Pix parcelado, no cheque especial ou em empréstimos, muitas vezes contratados no aplicativo.
Até 2018, o Código Civil proibia a execução de dívidas advindas de apostas esportivas. A lei que legalizou as bets mudou isso, segundo a advogada Débora Fernandes, do escritório Machado Meyer Advogados. “Isso serve só para os jogos não regulamentados.” Os caça-níqueis online, como o jogo do tigrinho, entraram no arcabouço regulatório aprovado em dezembro de 2023.
O professor da Faculdade de Direito da USP Heitor Vitor Mendonça Sica cita decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça para suspender dívidas de apostas. “Houve julgados, em que o sujeito foi ao Uruguai, saiu devendo de um cassino, que procurou a Justiça brasileira e não conseguiu executar a cobrança.”
GOIANO TEVE QUE SAIR DO PAÍS APÓS AMEAÇAS DE AGIOTAS
Um goiano de 29 anos chegou a dever cerca de R$ 500 mil a agiotas e a amigos ainda antes do jogo ser legalizado. Tiago (nome fictício a pedido do entrevistado), contudo, contornou os débitos contraídos diretamente com os intermediadores de apostas graças à proteção do artigo 814 do Código Civil.
O jovem, contudo, permaneceu com os estigmas sociais. “Além do dinheiro, as relações que você perde não têm volta, perdi amigos importantes por causa disso.”
A situação o motivou a se mudar em agosto de 2019, com ajuda dos pais, para a Itália, onde ele pediu dupla cidadania. Em dezembro daquele ano, se mudou para Londres. Lá, o goiano, que é bacharel em direito, vive como motorista de aplicativo.
O jovem teve seu primeiro contato com o jogo a dinheiro em salões de pôquer, em 2014. Ali, dois anos depois, conheceu as bancas clandestinas de aposta esportiva, que ofereciam crédito para o apostador.
Quem arbitrava os prêmios era uma casa da Paraíba, onde o jogo é regularizado desde 1967. Um intermediário em Goiás recebia os palpites e ganhava uma comissão sobre as apostas. O saldo do jogo era cobrado ao fim da semana.
“Eu comecei apostando R$ 100 e acertei”, recorda Tiago. “É como um mosquito que te morde: você ganha uma vez e pensa que vai ganhar de novo.”
Assim como ocorreu com Joana, o então estudante se endividou na busca por ganhos fáceis com o jogo. Como resultado, o operador da banca passou a ameaçá-lo. Segundo o jovem, houve até ameaça de morte.
A banca, relata Tiago, vendeu a dívida para um policial, que prosseguiu nas cobranças. À época, ele estourou dois cartões de crédito para pagar o jogo ilegal. Como não tinha acesso a empréstimos e cheque especial, começou a mentir para pais e amigos para conseguir dinheiro.
As quantias recebidas eram usadas em apostas com as quais ele esperava conseguir quitar as dívidas, se tivesse sorte. “Quando você deve R$ 100 é uma coisa, R$ 10 mil é outra, apostar R$ 100 não resolve”, afirma o goiano que também acabou deprimido. “Perdi a fome e não conseguia dormir pensando no buraco em que me enfiei.”
Esse gatilho, segundo psiquiatras, joga os apostadores em uma espiral de perdas.
“Normalmente, os jogadores são pessoas sérias e competentes, que pedem a confiança dos amigos para emprestar dinheiro em uma tentativa sincera de resolver o problema”, diz Maria Paula Magalhães de Oliveira, psicóloga do Programa Ambulatorial do Jogo, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
A professora de pós-graduação em economia da Fundação Getúlio Vargas Carla Beni avalia que as dívidas causadas pelas bets devem ter um dano sobre a economia do país, além do que os dados acusam, em função dos créditos irregular e informal. “Logo depois do Desenrola, vamos precisar de um Desenrola Bet para resolver essa nova onda de inadimplência.”
Tiago contou com o socorro dos pais, que pagaram os amigos, mas se negaram a quitar as dívidas com a banca. “Envolvemos uma pessoa da família, um delegado, que fez a ligação de cortesia: Deixa ele em paz “, diz o bacharel em direito.
“Me deixaram em paz, porque sabiam que não tinha como receber isso legalmente a não ser na base da ameaça, o risco já é calculado.”