Entre sexta-feira, 23 de junho, e sábado, dia 24, presenciamos um dos eventos políticos e militares mais importantes na Rússia nos últimos meses: a revolta do grupo mercenário Wagner contra o exército russo e a cúpula do governo de Moscou. Tratou-se de uma insurreição aberta de um grupo mercenário que, segundo relatos do próprio grupo, chegou a 200 quilômetros da capital. Essa situação traz ainda mais incertezas em um guerra em que tudo é uma interrogação.

Guerra da Ucrânia já dura mais de um ano. Foto: Getty Images

Usados desde a Antiguidade, grupos mercenários não são novidade. Eles são combatentes contratados por um governo, indivíduo ou organização em troca de pagamento ou benefício. No decorrer da Idade Média, os monarcas passaram a institucionalizar exércitos permanentes para garantir sua posição de poder. Foi nesse período que surgiram as primeiras organizações militares privadas, conhecidas como “compagnies” ou “condottieri”. Desde então, esse tipo de exército tem sido usado em várias partes do mundo.

No caso da Guerra na Ucrânia, o grupo mercenário empregado é o grupo Wagner, fundado em 2014 pelo ex-oficial das Forças Especiais russas, Dmitry Utkin. O grupo ganhou destaque por sua participação no conflito da Síria, lutando em apoio ao governo de Bashar al-Assad. Na Ucrânia, esteve envolvido no conflito no leste do país, apoiando separatistas pró-russos em áreas como Donetsk e Luhansk.

Um nome que se destaca é Yevgeny Prigozhin, conhecido como “chef de Putin” por ter ganhado lucrativos contratos de catering com o Kremlin nos anos 1990. Prigozhin seria – junto de Dmitry Utkin – um dos fundadores do grupo Wagner. Uma das características fundamentais do grupo e de seus fundadores é o absoluto desprezo pela vida e a exaltação máxima da crueldade. Soldados desertores ou que não lutam até a morte são torturados a marretadas.

Nos últimos meses, em meio ao fracasso cada vez mais evidente das forças armadas russas, Prigozhin vem criticando abertamente Vladmir Putin e o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu.

Em outubro do ano passado, Prigozhin afirmou que os “canalhas do exército russo deveriam ser enviados para a linha de frente com armas e pés descalços”. Em maio deste ano, ele afirmou que os voluntários estão morrendo na Ucrânia para que a cúpula do governo de Moscou possa “sentar como gatos gordos em seus escritórios de luxo”. Dificilmente alguém que critica Putin e seu governo de forma tão direta e aberta permanece vivo por muito tempo, mas Yevgeny Prigozhin não apenas o faz de forma livre, como também se dirige diretamente ao povo russo, já sendo candidato para disputar as próximas eleições presidenciais do país, que devem ocorrer em março de 2024.

Ao contrário de Putin e do ministro da Defesa Shoigu, Prigozhin aparece frequentemente no front, mostrando que a realidade dos combates é bem diferente daquela anunciada pelo Kremlin. Na sexta-feira, dia 23, Yevgeny Prigozhin acusou os militares russos de terem atacado um acampamento do Grupo Wagner e matado uma “grande quantidade” de homens.

Em seguida, veio a promessa de retaliação a Moscou, e o grupo marchou rapidamente para a Rússia, distanciando-se do front da guerra na Ucrânia, e tomou a cidade de Rostov-on-Don sem resistência, onde está localizada a sede do comando militar do sul russo, e posteriormente as instalações militares na cidade de Voronezh.

Horas depois, quando refinarias russas queimavam e helicópteros já haviam sido abatidos, Putin se pronunciou, dizendo que o movimento era uma traição rebelde. A essa altura, o prefeito de Moscou já havia adotado o protocolo antiterrorista na capital, fechando ruas, restringindo o tráfego e recomendando que as pessoas ficassem em casa. Após um acordo rapidamente costurado pelo presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, as hostilidades entre o Grupo Wagner e o exército russo cessaram. Putin teria prometido não processar os mercenários e Prigozhin se refugiaria em Belarus.

Mas afinal, o que podemos entender disso tudo? O primeiro fato é, certamente, a força do grupo mercenário. As cidades russas foram tomadas muito rapidamente e sem resistência, o que mostra um certo despreparo do exército central. Ainda assim, as forças russas não se juntaram a Prigozhin, o que sinaliza que Putin dificilmente seria derrubado se a insurreição tivesse continuado rumo à capital. Agora, os mercenários certamente saem enfraquecidos, pois Putin dificilmente seguirá confiando nessas tropas. Talvez por isso o presidente russo tenha chamado esses mercenários a se alistarem no exército oficial.

Assim como o grupo mercenário, Putin também sai enfraquecido desse episódio. Críticos de seu governo sempre desapareceram ou morreram misteriosamente, e agora o exílio é prometido àqueles que efetivamente iniciaram um levante armado contra ele. Nesta segunda-feira, Putin agradeceu os mercenários que desistiram da luta contra a Rússia e chamou os organizadores da rebelião de traidores da pátria. Ainda que novos pronunciamentos e informações certamente sejam divulgados nos próximos dias, é notório que tanto Putin quanto a Rússia enfrentam novos e mais graves problemas, tanto frente ao mundo quanto frente ao próprio povo.

*João Alfredo Lopes Nyegray é doutor e mestre em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Coordenador do curso de Comércio Exterior na Universidade Positivo (UP). Instagram: @janyegray