O Planet Hemp se despediu de Curitiba, na noite de sexta-feira (3), do único jeito possível: incendiando o palco e a consciência coletiva de quem cresceu ouvindo seus gritos de liberdade. A Live Curitiba virou território livre de resistência — uma celebração anárquica, barulhenta e lúcida de uma das bandas mais revolucionárias da história da música brasileira.

Três décadas depois de desafiar o sistema com microfones e guitarras, o grupo encerra a trajetória com a turnê A Última Ponta, reafirmando, em alto e bom som, o que sempre foi: mais que uma banda, um estado de espírito. Veja a entrevista completa abaixo.

planet-temp-show-curitiba-foto-lucas-sarzi-capa
Foto: Lucas Sarzi/Banda B.

Marcelo D2, líder e fundador, deixou claro desde o início: “O Planet Hemp vai acabar e precisava ser assim: com alto astral, entre amigos. Não é pra ficar de luto, vai ser uma comemoração da nossa história”.

E foi exatamente isso o que o público viu — uma festa sonora de resistência e identidade, onde cada riff, cada verso e cada grito resgatavam 30 anos de contracultura transformada em arte.

No palco, D2 e BNegão pareciam dois xamãs guiando uma multidão hipnotizada por beats de rap, distorções de rock, doses generosas de psicodelia e uma retórica política que continua sendo, infelizmente, urgente. A plateia, formada por diferentes gerações, reagia como se quisesse congelar o tempo — consciente de estar diante de um encerramento histórico.

Política, palco e pólvora

Antes de subirem ao palco, Marcelo D2 e BNegão receberam a Banda B. A banda, que ficou conhecida por enfrentar políticos e sustentar opiniões, falou sobre o Brasil.

“Esse momento louco que a gente tá vivendo. Acho que a gente tinha que acabar com esse fascismo tropical que assolou o país, tá ligado? E juntar força enquanto país e soberania nacional (…). A gente precisa responsabilizar quem tá fazendo essas merdas todas do país. É inacreditável esses falsos patriotas que dizem que amam o país e atacam o país”

disse Marcelo D2.

O discurso, político e espiritual, soa para Marcelo D2 como convocação. Embora não haja panfleto em sua fala, é possível notar uma constatação: o Brasil de 2025 ainda precisa das provocações do Planet Hemp — e talvez por isso o encerramento da banda soe, de certa forma, prematuro.

“A gente tem que acabar com essa coisa, fortalecer nossa democracia, fazer que o voto valha mesmo. Acho que esse é o momento para isso. O Brasil é brabo, amanhã pode ser outra coisa, mas nesse momento agora, a gente precisa parar com esses ataques. É inacreditável esses falsos patriotas que dizem que amam o país e que atacam o país, que acabam com o emprego, não querem diminuir o imposto de renda para quem ganha menos de R$ 5 mil. Os valores estão trocados do que é certo, do que é errado. Acho que a gente tem que estar um pouquinho mais de luz pra essa rapaziada, que a luta política, pelo menos, no momento, é essa”

desabafou D2.

D2 falava com a serenidade de quem sabe o tamanho da própria história e o impacto das próprias palavras. Sua crítica ao “fascismo tropical” ecoa também como um ato de resistência — uma lembrança de que, mesmo depois de décadas, o Planet Hemp segue sendo um ponto de interseção entre música e militância.

De presos a premiados

A história do Planet Hemp é feita de contrastes tão intensos quanto seu som. Da prisão por “apologia às drogas”, em 1997, à consagração no Grammy Latino, em 2023, o grupo foi de alvo do sistema a símbolo de liberdade artística.

O Planet Hemp surgiu no início dos anos 1990, quando falar sobre drogas, política e repressão ainda era tabu. Em plena ressaca da ditadura militar, o grupo levou para os palcos o debate sobre legalização da maconha e liberdade de expressão — temas que ainda hoje dividem opiniões, mas que se tornaram inescapáveis graças à ousadia deles.

O álbum Usuário (1995) — um clássico instantâneo — inaugurou um gênero, unindo rap, rock e discurso político em uma fusão inédita. Faixas como Legalize Já, Dig Dig Dig (Hempa) e Mantenha o Respeito se tornaram manifestos de uma geração que queria gritar, mas ainda aprendia a ser ouvida.

Os álbuns seguintes consolidaram essa rebeldia: Os Cães Ladram, Mas a Caravana Não Pára (1997), com a prisão da banda após o lançamento, é praticamente um tratado sobre resistência e censura; A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) mergulhou em experimentalismo e crítica social; e JARDINEIROS (2022) trouxe o Planet Hemp de volta com maturidade, mas sem perder o soco. Foi esse disco, aliás, que lhes rendeu dois Grammys Latinos — um reconhecimento tardio, mas justo.

Veja a entrevista completa:

Legado: coragem e identidade

BNegão, com seu timbre grave e presença magnética, resumiu com precisão o que o Planet Hemp deixa para as próximas gerações de músicos.

“De legado pra galera que tem banda, eu acho que o Planet Hemp deixa é ser uma banda sem medo. A gente construiu um estilo, porque não tinha banda desse tipo. A gente fez do nosso jeito e isso virou uma coisa gigante. Foi uma conjunção interplanetária muito louca”

comentou BNegão.

Ele também fez um alerta para o presente. Uma lição direta para quem ainda acha que rebeldia é estética e não essência.

“Hoje em dia tem uma doideira muito grande que todo mundo quer soar igual ao outro. Pra mim, o legado do Planet e das bandas dessa geração é: procure seu som, faça o que você acredita e vá até onde for possível”.

planet-temp-show-curitiba-foto-lucas-sarzi (1)
Foto: Lucas Sarzi/Banda B.

O som e o sangue

Curitiba recebeu uma performance que foi ao mesmo tempo brutal e sublime. Clássicos foram revisitados com novas roupagens, mas a essência seguia intacta: guitarras de Nobru e Daniel Ganjaman alternando entre fúria e groove, o baixo pulsante de Formigão sustentando o peso do discurso, e a bateria de Pedro Garcia conduzindo o caos organizado que é a marca registrada do Planet.

No meio do show, havia momentos em que o público parecia não saber se dançava, gritava ou refletia. Essa confusão emocional é justamente o que o grupo sempre provocou — e o que fez dele um fenômeno tão raro.

Veja a setlist do show do Planet Hemp em Curitiba:

  • Dig Dig Dig (Hempa)
  • Ex-quadrilha da fumaça / Fazendo a cabeça
  • Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga
  • Distopia
  • Taca fogo
  • Mary Jane / Phunky Buddha
  • Planet Hemp
  • Legalize já
  • Não compre, plante!
  • Jardineiro
  • Queimando tudo
  • Onda forte
  • Nunca tenha medo
  • Biruta
  • Cadê o isqueiro? / Quem tem seda?
  • Puxa fumo
  • Adoled (The Ocean)
  • Salve, Kalunga
  • Gorilla Grip
  • O bicho tá pegando
  • Mão na cabeça
  • Não vamos desistir
  • Stab
  • Procedência C.D.
  • 100% Hardcore
  • Zerovinteum
  • Hip Hop Rio
  • Samba makossa / Monólogo ao pé do ouvido (Nação Zumbi cover)
  • A culpa é de quem?
  • Contexto
  • BIS:
  • Deisdazseis
  • Mantenha o respeito  

O fim e o que fica

A turnê “A Última Ponta” termina em novembro, no Allianz Parque, em São Paulo. Mas, se o encerramento é inevitável, o impacto é duradouro. No palco, em Curitiba, havia uma sensação de ciclo que se completa — não de término, mas de passagem.

O Planet Hemp encerra sua trajetória com a mesma força com que começou: desafiando o silêncio, questionando o poder e lembrando que a arte, quando é verdadeira, nunca se apaga. Por isso, o que se viu na Live Curitiba foi mais que um show, foi uma catarse coletiva, uma despedida que soou como manifesto, uma aula sobre o poder da música quando ela se recusa a ser só entretenimento.