O Planet Hemp se despediu de Curitiba, na noite de sexta-feira (3), do único jeito possível: incendiando o palco e a consciência coletiva de quem cresceu ouvindo seus gritos de liberdade. A Live Curitiba virou território livre de resistência — uma celebração anárquica, barulhenta e lúcida de uma das bandas mais revolucionárias da história da música brasileira.
Três décadas depois de desafiar o sistema com microfones e guitarras, o grupo encerra a trajetória com a turnê A Última Ponta, reafirmando, em alto e bom som, o que sempre foi: mais que uma banda, um estado de espírito. Veja a entrevista completa abaixo.

Marcelo D2, líder e fundador, deixou claro desde o início: “O Planet Hemp vai acabar e precisava ser assim: com alto astral, entre amigos. Não é pra ficar de luto, vai ser uma comemoração da nossa história”.
E foi exatamente isso o que o público viu — uma festa sonora de resistência e identidade, onde cada riff, cada verso e cada grito resgatavam 30 anos de contracultura transformada em arte.
No palco, D2 e BNegão pareciam dois xamãs guiando uma multidão hipnotizada por beats de rap, distorções de rock, doses generosas de psicodelia e uma retórica política que continua sendo, infelizmente, urgente. A plateia, formada por diferentes gerações, reagia como se quisesse congelar o tempo — consciente de estar diante de um encerramento histórico.
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Política, palco e pólvora
Antes de subirem ao palco, Marcelo D2 e BNegão receberam a Banda B. A banda, que ficou conhecida por enfrentar políticos e sustentar opiniões, falou sobre o Brasil.
“Esse momento louco que a gente tá vivendo. Acho que a gente tinha que acabar com esse fascismo tropical que assolou o país, tá ligado? E juntar força enquanto país e soberania nacional (…). A gente precisa responsabilizar quem tá fazendo essas merdas todas do país. É inacreditável esses falsos patriotas que dizem que amam o país e atacam o país”
disse Marcelo D2.
O discurso, político e espiritual, soa para Marcelo D2 como convocação. Embora não haja panfleto em sua fala, é possível notar uma constatação: o Brasil de 2025 ainda precisa das provocações do Planet Hemp — e talvez por isso o encerramento da banda soe, de certa forma, prematuro.
“A gente tem que acabar com essa coisa, fortalecer nossa democracia, fazer que o voto valha mesmo. Acho que esse é o momento para isso. O Brasil é brabo, amanhã pode ser outra coisa, mas nesse momento agora, a gente precisa parar com esses ataques. É inacreditável esses falsos patriotas que dizem que amam o país e que atacam o país, que acabam com o emprego, não querem diminuir o imposto de renda para quem ganha menos de R$ 5 mil. Os valores estão trocados do que é certo, do que é errado. Acho que a gente tem que estar um pouquinho mais de luz pra essa rapaziada, que a luta política, pelo menos, no momento, é essa”
desabafou D2.
D2 falava com a serenidade de quem sabe o tamanho da própria história e o impacto das próprias palavras. Sua crítica ao “fascismo tropical” ecoa também como um ato de resistência — uma lembrança de que, mesmo depois de décadas, o Planet Hemp segue sendo um ponto de interseção entre música e militância.
De presos a premiados
A história do Planet Hemp é feita de contrastes tão intensos quanto seu som. Da prisão por “apologia às drogas”, em 1997, à consagração no Grammy Latino, em 2023, o grupo foi de alvo do sistema a símbolo de liberdade artística.
O Planet Hemp surgiu no início dos anos 1990, quando falar sobre drogas, política e repressão ainda era tabu. Em plena ressaca da ditadura militar, o grupo levou para os palcos o debate sobre legalização da maconha e liberdade de expressão — temas que ainda hoje dividem opiniões, mas que se tornaram inescapáveis graças à ousadia deles.
O álbum Usuário (1995) — um clássico instantâneo — inaugurou um gênero, unindo rap, rock e discurso político em uma fusão inédita. Faixas como Legalize Já, Dig Dig Dig (Hempa) e Mantenha o Respeito se tornaram manifestos de uma geração que queria gritar, mas ainda aprendia a ser ouvida.
Os álbuns seguintes consolidaram essa rebeldia: Os Cães Ladram, Mas a Caravana Não Pára (1997), com a prisão da banda após o lançamento, é praticamente um tratado sobre resistência e censura; A Invasão do Sagaz Homem Fumaça (2000) mergulhou em experimentalismo e crítica social; e JARDINEIROS (2022) trouxe o Planet Hemp de volta com maturidade, mas sem perder o soco. Foi esse disco, aliás, que lhes rendeu dois Grammys Latinos — um reconhecimento tardio, mas justo.
Veja a entrevista completa:
Legado: coragem e identidade
BNegão, com seu timbre grave e presença magnética, resumiu com precisão o que o Planet Hemp deixa para as próximas gerações de músicos.
“De legado pra galera que tem banda, eu acho que o Planet Hemp deixa é ser uma banda sem medo. A gente construiu um estilo, porque não tinha banda desse tipo. A gente fez do nosso jeito e isso virou uma coisa gigante. Foi uma conjunção interplanetária muito louca”
comentou BNegão.
Ele também fez um alerta para o presente. Uma lição direta para quem ainda acha que rebeldia é estética e não essência.
“Hoje em dia tem uma doideira muito grande que todo mundo quer soar igual ao outro. Pra mim, o legado do Planet e das bandas dessa geração é: procure seu som, faça o que você acredita e vá até onde for possível”.

O som e o sangue
Curitiba recebeu uma performance que foi ao mesmo tempo brutal e sublime. Clássicos foram revisitados com novas roupagens, mas a essência seguia intacta: guitarras de Nobru e Daniel Ganjaman alternando entre fúria e groove, o baixo pulsante de Formigão sustentando o peso do discurso, e a bateria de Pedro Garcia conduzindo o caos organizado que é a marca registrada do Planet.
No meio do show, havia momentos em que o público parecia não saber se dançava, gritava ou refletia. Essa confusão emocional é justamente o que o grupo sempre provocou — e o que fez dele um fenômeno tão raro.
Veja a setlist do show do Planet Hemp em Curitiba:
- Dig Dig Dig (Hempa)
- Ex-quadrilha da fumaça / Fazendo a cabeça
- Raprockandrollpsicodeliahardcoreragga
- Distopia
- Taca fogo
- Mary Jane / Phunky Buddha
- Planet Hemp
- Legalize já
- Não compre, plante!
- Jardineiro
- Queimando tudo
- Onda forte
- Nunca tenha medo
- Biruta
- Cadê o isqueiro? / Quem tem seda?
- Puxa fumo
- Adoled (The Ocean)
- Salve, Kalunga
- Gorilla Grip
- O bicho tá pegando
- Mão na cabeça
- Não vamos desistir
- Stab
- Procedência C.D.
- 100% Hardcore
- Zerovinteum
- Hip Hop Rio
- Samba makossa / Monólogo ao pé do ouvido (Nação Zumbi cover)
- A culpa é de quem?
- Contexto
- BIS:
- Deisdazseis
- Mantenha o respeito
O fim e o que fica
A turnê “A Última Ponta” termina em novembro, no Allianz Parque, em São Paulo. Mas, se o encerramento é inevitável, o impacto é duradouro. No palco, em Curitiba, havia uma sensação de ciclo que se completa — não de término, mas de passagem.
O Planet Hemp encerra sua trajetória com a mesma força com que começou: desafiando o silêncio, questionando o poder e lembrando que a arte, quando é verdadeira, nunca se apaga. Por isso, o que se viu na Live Curitiba foi mais que um show, foi uma catarse coletiva, uma despedida que soou como manifesto, uma aula sobre o poder da música quando ela se recusa a ser só entretenimento.
























