Foi entre as regiões de Integração do Baixo Amazonas e do Tapajós, onde a lâmina do facão de Rawi desenvolveu resistência para ele desbravar os próprios caminhos. Da arte de ser bixa, ele rala dobrado para contar a sua história, sem temer ou perder a ternura.
Idealizado pelo próprio Rawi em parceria com o cineasta Witalo Costa Silva – também responsável pela direção – “Facão Que Abre os Caminhos – O Filme” estreia nesta sexta-feira (17) pelo YouTube.
O filme é o encontro entre a ancestralidade do artista santareno e o desbravar de uma bixa destemida, com seu facão a tiracolo, em uma sociedade careta e deturpada.
(Arte/foto: João Victor/Bárbara Vale)
Natural de Santarém (PA), Rawi, 22, lança com exclusividade pelo Música é o Canal, “Facão Que Abre os Caminhos – O Filme“, o primeiro álbum visual da sua carreira.
Em quase 1h30 de conversa, via Whatsapp, Rawi abriu sua fortaleza e revelou as benevolências e adversidades sobre o desenvolvimento artístico em sua região. E ainda, o multiartista conta sobre o processo de produção do projeto que, além do filme, foi lançado em álbum, com a produção de Andrew Só.
Inclassificável. Rawi cometeu logo de cara, a façanha de reunir em seu primeiro álbum, nove faixas, onde a sonoridade não se prende unicamente às características musicais da região amazônica. “Facão Que Abre os Caminhos ” (Monhangarypy/2021) vai do metal ao pop, R&B, psicodelia, e claro, do brega ao carimbó e calypso. (Arte/Foto: João Victor/Jair Maia)
“Eu entendi o que era música quando eu vi meu avô tocando violão. Eu vi de perto essa emoção e foi pura faísca. Mas ainda, sem entender muito bem, eu me entrego para a arte de corpo e alma com 14 anos de idade. E foi pelo teatro que eu vi essa oportunidade“, relembra o multiartista santareno.
Das cênicas, Rawi se entregou de ‘corpo e alma’ para ‘entender os espaços‘. Cinco anos depois – ciente das arapucas da vida – em 2019 – sua trajetória já contava também com relações artísticas pela ilustração e poesia. E foi entre a palavra escrita e a cantada onde ele fez a sua alvorada.
(…)
na mão esquerda, um facão do tamanho de meu coração
na direita, amplifico algo que vem de dentro
sou dono das minhas pregas e com elas faço o que eu quiser
(…)
Trecho de “O Que Nos Sobra” composição de Rawi
“O Que Nos Sobra” é a música responsável por abrir o álbum “Facão Que Abre os Caminhos“ . A faixa que vai do metal ao noise – e surpreendentemente com referências do erudito – é quase quê, um abre-alas, onde Rawi faz o prólogo e deixa claro toda a essência da obra.
“‘Facão Que Abre os Caminhos‘, de cabo à rabo, é tudo pessoal. Tem metáforas, é claro. Mas um fundo de coisas passionais. Toda vez que eu me apaixonava me expresso pela arte. O passional sempre me cativou, sempre gostei de estar suspenso no ar. Mas, por um lado, também é auto-destrutvo. Nunca senti a reciprocidade que vai além das cargas dramáticas e questões familiares. É odiar, amando. Enfim, incoerências do amor“, consola-se o bandoleiro de coração geminiano. (Foto: divulgação)
Aquele que matou o próprio cúpido na ‘pinknigth‘
“Facão Que Abre os Caminhos“ é um álbum de dentro para fora e Rawi não fez questão alguma de escapar do sagrado ou profano. Santareno que só, criado dentro das águas e banhado em plena coesão dos seus lábios de formigueiro. Entre a solitude e a solidão, Rawi consolida a estética do seu facão, de acordo com as referências que ele atribui ser a Amazônia queer: sua própria pinknigth.
“Fazer o disco na minha cidade, para a minha base, sem ter que sair daqui, é saber que, aqui, é o meu lugar. E durante o processo eu já visualizava a estética do álbum. Foi quando eu fui para a casa de meus avós, com o álbum ganhando forma e achei essas características noturnas“, revela Rawi que, ao lado de Wernen Veiga, Yuri Rodrigues, Witalo Costa e João Albuquerque potencializaram as cores do álbum visual.
(Foto: divulgação)
Embora, um tanto descrente sobre a eficácia sentimental insólita dos relacionamentos que, geraram poéticas sonoras, o encontro de Rawi é nos braços dos avós, em Colônia São José Rio Curua Una – região de Santarém – a base de sua morada. A arte sempre esteve em sua família, é de berço e nasce em forma de cura, do avô violeiro e da avó benzedeira. Rawi é imaculado pela sua ancestralidade, com os pés na terra e a devoção açoita pela extensão do seu canto.
(Foto: divulgação)
“Facão Que Abre os Caminhos“ conta com a produção musical de Andrew Só (Foto) – jovem multi-instrumentista responsável por impulsionar a nova cena da música paraense. Além da parceria certeira com Rawi, o produtor também integra alguns dos principais grupos musicais de carimbó pau e corda do país: El Puxirum – o grupo participa da segunda temporada da websérie documental original do YouTube “Whindersson – Próxima Parada“, estrelada pelo comediante Whindersson Nunes.
(Foto: divulgação)
De encontro ao facão
Quem carrega o facão pela mão e a poética ao céu da boca, qualquer empecilho é mero desafio. Dito e feito. Do estopim de sua carreira, Rawi já enfrentava dificuldades para inserir seu trabalho pela cena cultural da região. “Ninguém me chamava para nada e eu comecei a fazer meus eventos“, confronta. E foi assim, pela famigerada arte da produção que, Rawi e Andrew Só se encontraram pela primeira vez.
“Durante a organização de um evento, eu cheguei nele para participar. Começamos a trocar algumas ideia, fazer música e quando eu vi, a gente já estava trabalhando juntos“, rememora Andrew Só.
Além do El Puxirum, Andrew integra ao lado do companheiro de grupo, o compositor e baixista, Cairê Martins o duo Alquimia Tapajó. E também, entre as parcerias artísticas, recentemente, ele assinou a produção executiva de “Onça Pintada“, clipe estrelado pela artista indígena Luiara Tainnan.
“Eu tenho parceria com muitos artistas. Mas é um universo muito novo para mim. Eu tenho como referência muita gente. E quando eu reconheço algo novo, eu corro atrás. Esse é o trabalho da produção. Em “Facão Que Abre os Caminhos” foram duas reuniões para fechar as letras e a harmonia. O Rawi tinha muitas ideias em mente, então foi mais fácil. Fomos para uma chácara e fizemos quase tudo em uma semana“, relembra.
A sinergia artística entre Rawi e Andrew é evidente em toda a construção de “Facão Que Abre os Caminhos“ .
“Como produtor ele não se colocou em um quadrado. Ele é um parceiro de construção. Ao todo, foi praticamente um ano e quatro meses de muito trabalho. Fizemos muitas coisas remotamente até irmos para a chácara. Lá, nós produzíamos 20 horas por dia. O Andrew traduziu tudo o que eu queria de uma forma muito clara“, enaltece Rawi.
Por mais que a sonoridade do álbum traga diversas referências da word music e almejando o dèbut de Rawi em todo o país, a música regional foi um desafio arrebatador para a personalidade de “Facão Que Abre os Caminhos“ .
“A gente queria algo complexo e além do regionalismo. A faixa ‘Armei Uma Arapuca’ chega com um brega-funk e uma guitarra mais pesada, recheada de experimentação e criando uma narrativa com o pop. Em ‘Furta-Cor (Bandoleiro)’, a última música que entrou para o disco, é uma mescla poética entre o regional e o RAP dos anos 1980. A guitarra groovada com um suingue e uma levada de carimbó” desvenda Andrew.
Nesta sexta (17), a partir das 19h, será lançado o álbum visual de “Facão Que Abre os Caminhos – O Filme“ com roteiro original e direção de Witalo Costa Silva e direção fotográfica de João Albuquerque.
Com mais de 50 profissionais envolvidos em toda a produção, o filme é um suprassumo visual além do estereótipo queer. O curta-metragem instiga desde o início – e assim como o álbum – por fazer um elo entre os devaneios passionais de Rawi e a busca pela ancestralidade despertada a partir da arte de seus avós. Enfrentando ainda a hipocrisia social e a homofobia.
“A gente se joga de uma maneira que, eu não sei como a gente ainda não caiu no chão até agora?!” se questiona Rawi que, além de carregar o facão e o microfone em mãos, abre seus próprios caminhos.