Ao adaptar o texto teatral que deu origem ao filme “Veneza”, que estreou nesta semana nos cinemas, Miguel Falabella, 64, percebeu que precisaria acrescentar novos detalhes à história original. “A peça do argentino Jorge Accame é muito concisa, tem uns 40 minutos. Desde que montei pela primeira vez no teatro, pedi permissão para mexer na história”, lembra o brasileiro.

Na hora, Falabella lembrou de um causo que encaixaria bem no universo do cabaré de Gringa, personagem central vivida no longa pela espanhola Carmen Maura, 75. “Há muitos anos, existia o Cabaré Casanova na Lapa”, conta. “Lá, conheci uma travesti que era casada com uma prostituta. Era um casal feliz.”

“Eu fiquei tão impressionado com aquilo”, lembra o ator e dramaturgo, que levou quase 20 anos para levar a história ao cinema. “No começo, olhei com preconceito. Mas aquela mulher era uma grande personagem. A aceitação daquilo que é diferente, de alguém que fala uma língua a mais que você, é o que permite você criar. Essa história nunca saiu da minha cabeça.”

A atriz Carol Castro. Foto: Redes Sociais

E, assim, foram parar no filme os personagens Madalena (Carol Castro) e Julio (Caio Manhente). Ela uma prostituta, ele um jovem cujo pai o leva ao bordel pensando ser pegador, mas que, na verdade, gosta de se travestir quando está a sós com a prostituta. Os dois se entendem e planejam fugir juntos, para que ele possa viver sua verdade longe da família conservadora.

“Madalena é a personificação do amor”, avalia a intérprete, que ganhou o prêmio de atriz coadjuvante no Festival de Gramado pelo papel. “Mesmo nessa condição de desgraçada, ela não perde esse brilho, ela tem essa gana pela vida. O mais lindo é que é um amor sem rótulos, o que importa é a essência.”

Carol Castro defende que a personagem não vê no amado apenas a chance de sair do bordel e ganhar o mundo. “Eu fiz ela completamente apaixonada por Júlio e acreditando naquele amor sem gênero”, diz. “Ela tem essa vontade de sair, romper os limites e ir atrás do sonho, mas com esse amor, que é genuíno.”

Para Manhente, que faz seu papel mais maduro após participar de tramas como “Detetives do Prédio Azul” e “Malhação”, o personagem representa o sonho de liberdade. “Ele diz respeito a muita gente que não se sente livre para viver como quer.”

“Quando fui construir Júlio, meu cuidado foi de não torná-lo um garoto amargurado”, conta. “No filme, ele é tolhido de viver tudo o que tem para viver. É uma responsabilidade muito grande, um tema muito sensível.”

O ator diz como encontrou elementos para a composição do personagem. “Tentei ir encontrado esse Júlio em mim, nas coisas que eu quero realizar e não deixam”, diz. “Tentei dar esse contorno. Acima de tudo, é um garoto que se propôs a viver o sonho dele junto com a Madalena. Isso que o faz feliz e o fez sobreviver durante muito tempo.”

Roney Villela afirma que também tomou cuidado na construção do pai transfóbico de Júlio, que ele define como “um rasgo na poesia do filme”. “Ele é um personagem fácil de cair no clichê”, explica. “É um símbolo vivo, o Brasil está infestado de gente assim. Um cara que vive no seu cercardinho, não tem acesso a informações e é chucro ao extremo.”

CABARÉ

Carol Castro afirma que, durante as gravações, tinha acabado de dar à luz sua primeira filha, Nina, hoje com três anos. “Madalena me trouxe o feminino de volta”, comenta. “Não estou falando só da estética, mas do sentir mulher. Ela me trouxe esse frescor do sonhar, ir adiante, essa persistência que a gente precisa hoje mais do que nunca.”

A atriz conta que não chegou a fazer pesquisa em cabarés reais. Ela foi procurando a personagem no roteiro de Miguel Falabella e nas experiências de vida. “Estava tudo ali no texto, que era muito rico”, diz. “Toda essa paixão que o Miguel tem por esse projeto nos atingiu completamente e nos preencheu.”

“E tem a coisa do ator, né?”, continua. “A gente observa tudo. Uma pessoa que passou na rua andando diferente já fica aqui computado e você vai e coloca isso em determinado momento de algum personagem. Junta isso com a magia da direção de arte e da fotografia e vira um outro mundo.”

Castro também elogiou o figurino da Bia Salgado, que a ajudou a entrar no clima. “Quando a gente colocava aquela meia arrastão, aquele salto alto aquele, o casaco rosa… aquilo tudo ia compondo”, explica. Foi um processo do coletivo, que aconteceu muito naturalmente.”

Na pele da prostituta Rita, Dira Paes, 51, afirma que trouxe conhecimentos de pesquisas anteriores. “Eu já estive muito nesse universo em outros filmes”, conta, lembrando de longas como “Baixio das Bestas” (2006) e “Redemoinho” (2016).

“Fiz uma pesquisa desse universo num bordel que se chamava Toca da Mandioca no interior de Minas Gerais”, lembra. “Tive contato com mulheres que cada uma era um longa-metragem. Mas essa não era a ideia aqui, Miguel falou que queria trabalhar um universo lúdico e menos naturalista. Elas são desgraçadas, mas têm um encantamento.”

Homem responsável por pequenos serviços no bordel de Gringa, Tonho é vivido por Eduardo Moscovis. “Não fiz pesquisa com profissionais do sexo, só de amadores do sexo mesmo”, diz o ator, em tom de brincadeira.

“Ele faz parte daquele universo, mas não atende diretamente. Não pensei sobre isso, será que tem alguma restrição para os homens atenderem em bordel? Ia ser interessante se pudesse atender também, né? Quem sabe num próximo filme.”

Danielle Winits, 47, que no longa interpreta a prostituta Jerusa, diz que também procurou a personagem dentro de suas referências prévias. “Tentei trazer essa doçura da personagem, mesmo estando nessa vida árida”, explica. “No fundo, ela é uma menina conformada com aquela vida que ela tem ali, e que se sente de alguma forma protegida por aquela família.”

Atriz do elenco que mais trabalhou com Miguel Falabella em projetos anteriores, Winits diz que conheceu o autor durante uma participação no extinto “Sai de Baixo” (Globo). “Ele é um pedaço de mim”, afirma. “Cada vez que ele realiza um sonho, o sonho é realizado para mim também, eu estando ou não no projeto.”

Veja o trailer do filme: